quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Para Uma Menina Com Uma Flor

Porque você é uma menina como uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram
sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas
estrangeiras. E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu
cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair
para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você
se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você
é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada",
a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique

deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.
E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche
de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobre tudo porque você é uma menina com uma flor.

(Vinicius de Moraes)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Sem Motivo

O silêncio não tem
Razões ou motivos.
Assim como o vento, a lua e o sol.
Nenhum deles tem um porquê.
Ou pelo menos ninguém conhece.

Pra mim eu quero o mesmo
E se pudesse, quereria pra todos.
Acho que todos merecem
Um pouco de leveza
(um pouco além do de sempre).

Acho que não quero motivos
Porque assim teria um motivo
Pra gostar de meus poemas.
Eu, que os escrevo, e não leio
(e não leio os de mais ninguém)

Mas de qualquer jeito
Que eles continuem sem motivo
E que eu continue também.
Quem sabe assim eu vivo
E vivendo encontre alguém.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Amor de Mão Única

Amor de mão única!
Quanto trabalho
Já me destes!

Cada vez que me tomas
Com teus dedos
Longos e firmes

Parece que interrompes
As batidas
Do meu coração

Fazes de mim
O que bem entendes
E depois se vai.

E parece que o amor
De mão única
É assim pra sempre

Quando a mão é dupla
Ele se desfaz -
O encanto se foi.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A Estrela que Brilha em Silêncio

Que as flores do lago
Embebidas em sal
Floresçam ao teu lado
Ó querida mortal.

Guardes contigo o amor
Que eu te ofereço
Que existe em louvor
Em todo meu apreço.

Das chuvas me guardaste
Do sol me protegeste
Do céu não me privaste
Da rua preveniste.

Porém, em mim existe
Desejo de voar
Mas ficarei eu triste
Se a ti não voltar.

Peço-te com fervor
Para me entender
Entender o amor
Que não hei d'esquecer.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Entre o Começo e o Fim

Quando tudo acabar
Eu quero conversar.

Quando tudo por fim
Se tornar uma leve lembrança
Eu quero poder dizer
O quanto me arrependo.

Sinto falta de tudo que
Nunca mais poderemos ter.

Sinto falta porque
Toda vez que eu olhar
Pela janela e vir uma flor
Eu vou lembrar de você.

Todos os dias vou lembrar
De você e de mim.

Todos os dias entre
O começo e o fim
Vão ser sempre
Assim.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Festa (Sem Pressa)

Vamos todos

Caminhar na floresta

Vamos festejar os campos

Vamos fazer uma festa

Aproveitem o dia

Pulem e rolem pela grama

Não sou eu que vos convido

É a vida que vos chama!

Venha, junte o povo

Junte todos, comamos juntos!

Vamos criar um sentimento novo

E podemos criar assuntos!

Vamos fazer poemas

Conquistar as damas

Que elas se juntem

A todos que se reúnem

Assim podemos curtir

E a magia vai agir!

Venham, venham, tolos!

Que da floresta temem as trevas

Mas o medo é coisa velha

E é hora de curtir a relva!

Deixem o orgulho de lado

E vamos aproveitar o dia

Vamos soltar um brado

De esbanjar alegria!

Venham e me sigam

Porque temos nossa pressa

De ir pelo caminho mais curto

Para aproveitar mais a festa!

Vamos nos perder

Pela grama dos campos

Até o sol descer

E depois de todos os cantos!

Ainda que caia a noite

Toda a alegria é nossa!

Não vamos perder o mote

Porque a pressa é joça!

Joça do tempo

Que quer nos ver correr

Mas hoje vamos correr!

Não de pressa e sim de alegria

Porque toda a felicidade

Possui um dom

E ela a todos

Contagia!

E todos vamos pular

E pelos campos correr

Vamos nos debater

E a luz celebrar!

Que o Sol se dê ao luxo

De sumir, de se fazer fresco

Sendo assim, acenderemos as lanternas

Porque a festa é eterna!

Se junte à nossa alegria!

Porque ela é de todos os dias

É ela que faz a poesia

Que no mundo todo vivia!

E, já no fim da festa,

Vamos atravessar o lago

Vamos deitar de lado

Deitar e sonhar

Vamos deixar a floresta

Sem pressa...

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Por que não tenho livre-arbítrio

Não tenho livre-arbítrio, e isso é ótimo.

É meu cérebro que controla meu comportamento. Ele é, como toda matéria, constituído inteiramente de elementos químicos. Ele é extraordinariamente complexo, com muitos componentes, todos interconectados em um padrão confuso e ainda pouco compreendido. Não obstante quão complicado algo seja, permanece o fato de que em um dado momento, este algo estará em um dado estado de organização. Os elementos químicos estão ligados em combinações particulares, e a energia e a matéria estão movendo-se em direções particulares.

Algum estímulo chega a mim vindo do ambiente. Este é captado pelos meus sentidos e o sinal é enviado ao meu cérebro. O sinal interage com meu cérebro, alterando seu estado físico e químico, tendo como resultado alguma reação de minha parte. Meu corpo, então, segue as instruções dadas pelo cérebro a respeito do que fazer. Houve algum livre-arbítrio nisso? Não, nenhum.

Alguém conta uma piada. Ouço-a. As vibrações sonoras da piada chegam ao meu cérebro através de meus ouvidos e são traduzidas em atividade eletroquímica. As regiões do meu cérebro responsáveis pela linguagem reconhecem o significado das palavras. A piada, que diz “Estas mulheres, como as concebo, são-me aprazíveis”, baseia-se na compreensão da ambigüidade do som cacofônico destas palavras, que podem significar “como as considero” ou “como-as com sebo”. Percebendo que a ambigüidade sonora é jocosa, sou capaz de entender a piada. Meu cérebro registra a hilaridade da piada, e então rio. Mas não decido rir conscientemente. O estímulo da piada teve como resposta meu riso.

Poucos minutos depois, ouço a mesma pessoa contar a mesma piada a outrem. Desta vez, não rio; não rio porque já ouvi esta piada anteriormente. Meu cérebro foi quimicamente alterado na primeira vez em que a ouvi, e agora o som da piada está interagindo com um cérebro que já não é mais o mesmo.

Apesar disso, às vezes tenho a sensação de que realmente tomo decisões. Estou numa loja tentado a comprar um par de óculos de sol, mas não consigo decidir se realmente valem o preço que preciso pagar por eles. Fico ruminando e remoendo sobre a decisão, e então deixo a loja sem comprá-los. Volto para casa pensando o tempo todo se fiz a coisa certa. Ainda assim, não há livre-arbítrio envolvido, mas apenas a ilusão de um.

Era certo que não iria comprá-los. Meu cérebro estava em um estado químico particular quando a oportunidade de comprar os óculos chegou, e dada a combinação particular de circunstâncias – o humor em que estava, a iluminação da loja, o conhecimento de meu estado financeiro –, era certo que decidiria contra o investimento. Minha mente consciente, entretanto, não sabia qual seria a decisão final, e aquilo que senti conscientemente foi apenas a agonia da decisão. Tais decisões difíceis são muito raras.

Algumas pessoas revoltam-se contra a conclusão de que não temos livre-arbítrio. Alegam que isso é deprimente, por algum motivo. Nunca me explicaram, apesar de eu ter perguntado muitas vezes, por que deveria me sentir deprimido ao descobrir que não tenho livre-arbítrio. A idéia de que não temos livre-arbítrio é uma conclusão lógica que pode ser inferida a partir do simples fato de que o cérebro é feito de matéria, e que este interage com o mundo através dos sentidos.

Vejo o mundo em que vivo como um lugar grande e complexo. Conseqüentemente – apesar de este possuir um certo e confortante grau de previsibilidade – nunca saberei ao certo qual será o próximo estímulo que irei experimentar. Ademais, não tenho acesso a tudo que meu cérebro está fazendo; deste modo, mesmo se pudesse prever os acontecimentos, ainda não poderia prever qual seria minha reação a eles. A vida é uma interessante experiência tridimensional, com visões, sons, cheiros, sabores e sentimentos. Por que deveria reclamar por não ter livre-arbítrio se possuo a perfeita ilusão de tê-lo, e o mundo é tão encantador? De que modo ter livre-arbítrio poderia me tornar mais feliz?

As pessoas falam sobre quão maravilhoso é o fato de termos evoluído um livre-arbítrio. Algumas consideram o livre-arbítrio algo tão estupendo que as convence de que um deus deve ter criado os seres humanos, e que o livre-arbítrio é alguma mágica especial que os homens possuem. Na verdade, não evoluímos um livre-arbítrio absolutamente; em vez disso, evoluímos a consciência e a ilusão de um livre-arbítrio. Freqüentemente, para nós, de fato parece que poderíamos ter decidido agir de um modo diferente do qual agimos.

Então por que evoluímos a ilusão de um livre-arbítrio? Parcialmente, isso está relacionado ao fenômeno da consciência, mas também ao auto-engano. Se conseguir enganar a mim mesmo, pensando que sou uma boa pessoa, então terei muito mais êxito em enganar os outros e fazê-los pensar o mesmo. Na realidade, no fundo, todos os nossos instintos atuam em função da auto-satisfação. Apenas sou uma boa pessoa porque, em longo prazo, sê-lo me é conveniente. Se me convencer profundamente de que sou uma pessoa boa, então não irei ceder à tentação de ser mau em troca de uma vantagem de curto prazo. Serei uma pessoa boa de modo consistente, e os benefícios da bondade são muito maiores àqueles que agem assim. A ilusão do livre-arbítrio faz sentir que estou escolhendo ser bom, e, se estou escolhendo ser bom, tendo a escolha de ser mau, então devo ser realmente uma pessoa boa, certo?

Pessoas que foram hipnotizadas para gritar “Golaço!” com toda a força todas vezes que alguém usasse a palavra “Chute” darão motivos totalmente espúrios se forem questionadas sobre o motivo de terem gritado. Elas fazem o que fazem apesar de não saberem o porquê. A ilusão do livre-arbítrio nos protege de nossos verdadeiros motivos. A psicologia evolutiva é em grande parte o estudo de nossos motivos subconscientes. Aqueles que a estudam constatam repetidamente que nossos motivos simplesmente acontecem de coincidir com a estratégia que maximizaria o número de genes que poderão ser repassados. Homens não escolhem pensar que mulheres de vinte anos são mais atraentes que as de oitenta anos – simplesmente pensam assim. E simplesmente acontece que homens que pensam assim podem transmitir mais genes, pois mulheres de oitenta anos não podem engravidar. Isso não é coincidência. Similarmente, pessoas que foram enganadas por irmãos têm muito mais chances de conceder perdão do que aquelas que foram enganadas por indivíduos sem parentesco. O perdoador potencial compartilha genes com seus irmãos, e por isso há um interesse genético compartilhado. A pessoa que foi enganada pode sentir que tem a opção de não perdoar seu irmão, mas perdoar seu amigo, contudo não tem. A ilusão do livre-arbítrio evita que o indivíduo perceba a verdade, e assim aja mais eficientemente em função de seus genes. Se o indivíduo soubesse a verdade, poderia começar a agir contrariamente aos interesses de seus genes. Talvez algumas pessoas no passado tenham feito isso, mas provavelmente não se tornaram nossos ancestrais (mas, ainda assim, não tinham livre-arbítrio).

Bem, então não tenho livre-arbítrio. Posso sentar-me e aproveitar esta viagem de montanha-russa que é a vida. Nem mesmo sei o que farei daqui a pouco. Interessante, não?

(Nikolas Lloyd)
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Engula essa, Sartre. Condiz bastante com o que penso, embora estivesse além da minha capacidade (ou vontade) exprimir dessa maneira.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A Volta do Malandro

Eis o malandro na praça outra vez
Caminhando na ponta dos pés
Como quem pisa nos corações
Que rolaram nos cabarés

Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés

Deixa balançar a maré
E a poeira assentar no chão
Deixa a praça virar um salão
Que o malandro é o barão da ralé

(Chico Buarque)
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Adoro Chico. Demorei quinze anos pra descobrir o quanto esse cara é formidável. Ainda bem que acordei a tempo.
O malandro é o barão da ralé!

Cai d'estrela

Caio, cai
nas ruas.
S'afoga
em pensamentos.

Esconde
detrás d'um sorriso
uma tristeza
inconcebível.

Disfarça.
Ele sorri;
achando graça,
ele se vê.

Caio se vai
gingando num samba.
Ele se perde, por pouco não cai..!
da corda bamba.

Malandro de branco
esperando apoiado
em seus tamancos
de porcelana.

Caio não diz
qu'espera ou não
Mas digo pra ele:
Vem por aqui.

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Caio Eduardo Gabriel,


nós te saudamos!

Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
[ extático da aurora.
(Vinícius de Moraes)
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Eu não sou o maior fã de Vinícius que existe, nem sequer um dos maiores. Pessoalmente, alguns de seus poemas irritam-me, e não porque me fazem sentir inferiorizado. Esse em especial, porém, é meu favorito, e também o mais singelo e bonito que conheço. É... terno. Eterno.

O livro secreto das memórias perdidas

Esse é meu mais íntimo e pessoal relato público. Ou, devo dizer, coleção de relatos públicos. Enquanto A Voz Do Solitário é minha representação em prosa (prosaica, digamos), essa é minha manifestação poética, conforme algumas reflexões e definições a respeito de poesia que eu guardo. Não me comprometo a nada, aqui, exceto a pensar somente em mim. Poesias, minhas ou não, serão o assunto principal.
This is how my mind would appear if you looked at it with unprepared eyes.